domingo, abril 30, 2006 

UMA NO CRAVO, OUTRA NA ROTINA...

Alguns leitores questionaram a ausência de referências à Revolução dos Cravos na primeira página do jornal de 25 de Abril.

Na minha simples ignorância de quem já nasceu em liberdade, sugeria apenas que num feriado nacional como o 25 de Abril, o PÚBLICO efectivamente o mencionasse na capa. Assim se começa a perder a importância das memórias. Fiquei extremamente desiludida com o meu jornal de referência, escreve Mariana Cardoso.

Crítica, desabafo, desagrado, desencanto, ou o que se queira. Cá em casa fomos vários a procurar na primeira página do PÚBLICO (ainda é com caixa alta?) de 25 de Abril qualquer referência à comemoração do dia, mas o que se descobriu de mais aproximado foi a “orelha” de publicidade aos “cêdês” do Mário Viegas. De resto era preciso “dar ao dedo” pelo jornal adiante (editorial incluído!), para, finalmente, encontrar alguma coisa sobre o que se procurava.
O que mais lamento é que um jornal que me entra em casa todos os dias desde que existe e onde os meus filhos aprenderam a ler muito daquilo que ia e vai para além da escola não tenha querido partilhar com eles, que são novos e precisados, um momento da nossa História recente que foi sobretudo um desejo de haver futuro
, lamenta-se o leitor António Santos de Espinho.

Ao comprar PÚBLICO abri o jornal, rebusquei toda a 1.ª página, procurei nos títulos mais pequeninos, e nem quis acreditar: não continha uma única referência ao 25 de Abril de 1974! Só lá para o meio, enésima página, se falava do 25 de Abril e a propósito das eleições! Daqui a uns anitos, o PÚBLICO noticia o 25 de Abril na antepenúltima página, com os aniversários dos colunáveis e “socialites” todos. Uma VERGONHA!
A ausência de qualquer referência ao 25 de Abril (na 1.ª página) é tanto mais incompreensível quanto puxam para a mesma, com máximo destaque, um aniversário que só aconteceria no dia seguinte. Como sabe, Tchernobil deu-se na madrugada de 26 de Abril, efeméride que, de resto, muitos outros jornais referem na 1.ª página de 26 de Abril. Eu também comprei a edição de 24 de Abril e não vi comemorar nela o 25 de Abril,
acrescenta Fernando Oliveira, outro leitor da Senhora da Hora.

Pedi um esclarecimento a José Manuel Fernandes, director do PÚBLICO.

“A opção de dar este ano mais destaque a Tchernobil do que temos dado nos últimos anos derivou de ser um aniversário ‘redondo’ (20 anos) e de o debate em torno da energia nuclear ter regressado à actualidade. Antecipámos um dia a data exacta do aniversário por duas razões: primeiro, porque sendo um trabalho longo, achámos que se adequava bem a um dia feriado, em que os leitores têm mais disponibilidade para ler; depois porque entendemos que no dia 26 de Abril o destaque do jornal tinha obrigatoriamente de ser o primeiro discurso nessa data do novo Presidente, o qual estava a suscitar muita expectativa.
“Quando ao 25 de Abril, sei que preparámos sempre edições especiais nos anos em que o aniversário era ‘redondo’ (20, 25 e 30 anos) e, nos outros, assinalámos a data de outras formas, procurando por regra fugir à rotina.
“Este ano tivemos a ideia de realizar os trabalhos que preenchem quatro páginas, que são interessantes mas nem sequer se centram no 25 de Abril de 1974, mas em eventos que ocorreram depois (primeiras eleições legislativas e julgamento dos pides). São informativos, mas não tinham o impacte dos trabalhos que fizemos nos aniversários ‘redondos’ ou mesmo do trabalho sobre Tchernobil.
“Esta opção editorial permitiu-nos dar grande destaque a ambos os assuntos em duas primeiras páginas consecutivas, não tendo sido obrigados a ‘dividir’ a primeira página de dia 26 pelos dois temas, como sucedeu com o DN e o JN.
“Um diário combina actualidade com reflexão e aprofundamento das notícias (investigações, dossiers, reportagens especiais) e julgo que o equilíbrio entre as duas edições está correcto.
“Não aprecio o termo ‘ignorar’, pois não julgo correcto quando falamos das escolhas para uma primeira página: implica que dando ela destaque a seis, dez temas de uma edição, ‘ignora’ todos os restantes 100 a 120 (números médios). Para a primeira página fazem-se escolhas a partir de uma lista vasta de propostas dos editores (que também eles realizam escolhas antes). Todos os dias há temas que deviam, ou poderiam, estar na primeira página e ficam de fora. Por isso a escolha da primeira página de dia 25 decorre da escolha de conjunto feita para os dias 25 e 26 relativas à forma como devíamos, este ano, tratar dois aniversários que quase coincidem.
“Colocar uma chamada sobre o 25 de Abril apenas ‘porque é suposto ter sempre uma chamada sobre o 25 de Abril’ implicava deixar outras de fora. Pode-se discutir se alguma das outras (todas notícias do dia, mais uma efeméride ‘redonda’) era menos importante, como se pode discutir todos os dias e por regra fazemos muitas vezes nas reuniões de editores. Mas não se deve discutir se o jornal tem de fazer sempre uma espécie de ‘declaração política’ na primeira página cada vez que passa mais um aniversário do 25 de Abril”, responde o director.

É a explicação de José Manuel Fernandes.

O provedor considera que o critério editorial de “fugir à rotina” é... inovador. Mas ficamos sem saber se devemos ou não felicitar-nos pelo facto de os capitães de Abril terem, também eles, fugido “à rotina”.
A TV, a rádio e os jornais nacionais regem-se cada vez mais por critérios de proximidade (é o polémico mandamento do “quilómetro sentimental” – um morto, cá, é notícia; mil mortos, na China, também é notícia e – parafraseando um jornalista nova-iorquino – “no Chile não acontece nada, nunca”).

O PÚBLICO, ao escolher dar honras de primeira página a Tchernobil no 25 de Abril, optou, decididamente, por fazer jus à vocação universal de Portugal e dos portugueses.
É uma opção legítima e perfeitamente compreensível nos dias que correm...

domingo, abril 23, 2006 

ANATOMIA DE UMA EDIÇÃO

Um leitor de Chaves dissecou o PÚBLICO e escreveu ao provedor a dar conta dos seus reparos e dúvidas. Optei por dividir a extensa mensagem electrónica de J. B. César em oito partes por uma questão de facilidade de leitura.

Se achar pertinente, gostava que se debruçasse sobre os critérios gráficos e editoriais que foram usados em alguns dos títulos da edição do PÚBLICO de 16 de Abril de 2006, que passo a reproduzir:
“A sombra de Paulo Portas” (pág. 14) – A falta de submissão do termo “sombra”, por aspas ou itálico, a qualquer sentido figurado, pode induzir o leitor a deduzir que o jornal vê na sombra produzida pelo político algo de especial que mereça ser noticiado.

Pedi um esclarecimento a José Manuel Fernandes, director do PÚBLICO.

“A palavra ‘sombra’ não é utilizada apenas no sentido literal de alguém que tira a luz. A palavra possui também um sentido figurativo bem conhecido, consagrado nos dicionários, pelo que se dispensa a utilização de aspas.”

Só por preciosismo linguístico se pode contestar a formulação adoptada pelo jornal. “Sombra” também significa (Dicionário de Português – 4ª Edição – Porto Editora) “espírito” e “fantasma” ou, por outras palavras, infl uência ou presença ilusória.
O PÚBLICO não errou.

“Contra a guerra nas estradas” (pág. 14) – O mesmo acontece aqui. Que se saiba, não ocorre nenhuma guerra civil nas estradas; Não deveria ter sido usado, na “sombra” e na “guerra civil”, o critério usado no título “Xiitas do Iraque deixam ‘cair’ Jaafari”?;

O director responde: “O segundo ponto levanta mais dúvidas e situa-se numa zona de fronteira. Se o termo fosse do jornal, parece-me claro que se devia ter utilizado aspas. Como é o título de uma coluna dedicada a uma organização da sociedade civil que utiliza essa imagem quase como lema identificativo, tenho dúvidas se colocar as aspas não poderia produzir o efeito de diminuir, ou mesmo apoucar, os objectivos prosseguidos por essa ONG, o que seria desagradável.”

Trata-se de outro preciosismo, louvável porque só revela a minúcia com que muitos leitores lêem o PÚBLICO, mas ainda assim é um preciosismo.
O PÚBLICO não errou.

“‘Oportunidade’ para Braga” (pág. 23) – Trata-se mesmo de uma oportunidade efectiva para o Hospital de S. Marcos, esta é no sentido figurado a que as aspas induzem ou trata-se de uma citação? Lendo o texto, pode concluir-se que será uma citação. Mas, em qualquer caso, irrelevante. Ao ponto de, no título, não se associar a nenhuma fonte...

Eis a resposta do director: “No caso da ‘oportunidade’, sendo uma citação, o Livro de Estilo recomenda que se utilizem aspas. As limitações habituais de espaço na feitura de um título poderão justificar a não atribuição directa da citação, mas o próprio leitor a encontrou depois no texto. O título não será perfeito, mas julgo que se enquadra em códigos de leitura que, de uma forma geral, porque uniformes, são compreendidos pelos leitores.”


A explicação é aceitável.
O título é infeliz, mas a citação da declaração de Lino Mesquita Machado, presidente do conselho de administração do Hospital de S. Marcos (Braga), não é irrelevante.
O leitor só parcialmente tem razão.

“Pentágono já fez ‘jogos de guerra’ para invasão do Irão” (pág. 16) – Neste caso, ainda que as aspas não sejam despicientes de todo, não chocaria se não fossem usadas – afinal, segundo a notícia, os militares norte-americanos e britânicos realizaram mesmo umas guerras a fazer de conta, ainda que com o real fito, sempre presente, de nos defenderem dos maus;

O director do jornal discorda do leitor: “A expressão ‘jogos de guerra’ é genericamente usada entre aspas, no PÚBLICO como na maior parte dos jornais de referência internacionais, com excepção dos anglo-saxónicos, que têm códigos de titulação mais secos e directos.”

Ficamos, portanto, a saber que de um modo geral os países e as culturas latinas recuam perante a expansão anglo-saxónica, mas o PÚBLICO, pelo menos, não baixa os braços neste combate e assume a sua latinidade como o general (Cambronne?) de Napoleão em Waterloo: “A Guarda está a morrer, mas não se rende”…

“Quase 50 mortos no Afeganistão numa ofensiva contra os taliban” (pág. 18) – Para quê anunciar-se “quase 50 mortos” se no texto se esclarece que foram 47? E por que “taliban” se grafa – no título e no texto – sem aspas ou sem itálico e para “mullah” [Omar] já houve necessidade de se usar o itálico?

José Manuel Fernandes contesta a argumentação do leitor: “Só uma pequena precisão: o Livro de Estilo grafa taliban sem aspas e sem itálico e mullah em itálico. Contudo, antes da mudança de sistema informático era muito difícil colocar os itálicos, que exigiam uma revisão peça a peça complexa. O novo sistema já permite optar por itálicos para termos estrangeiros, e essa é a regra, mas a colocação entre aspas correspondia à fórmula antiga e às vezes alguns jornalistas ainda a utilizam por hábito (o Livro de Estilo mudou a regra há um ano e os hábitos, por vezes, levam mais tempo a mudar...). Mas o essencial está correcto, de acordo com o glossário adoptado, que admito ser discutível mas que procurou sobretudo uniformizar grafias em termos que a imprensa portuguesa grafa de forma muito distinta.
Se a palavra não estiver vertida já no Livro de Estilo, a regra é grafá-la em itálico, pois considera-se que não é uma palavra portuguesa ou já aportuguesada.

A explicação do director é aceitável no que diz respeito à grafia.
Em relação aos “quase 50 mortos”, o leitor tem razão. O próprio texto indica que morreram 47 homens no decorrer da ofensiva. O rigor é importante mesmo se os três (felizmente não) mortos não são pessoas próximas do autor da notícia…


“Protesto violento de polícias em Gaza contra governo do Hamas” (pág. 17) – O protesto foi contra o “governo do Hamas” ou contra o governo da Palestina? Ou será que o Hamas é governado por um governo e o protesto, “violento”, visava essa instância que governa o Hamas? E o tal protesto foi, realmente, violento? Pode noticiar-se como “protesto violento” o facto de perto de 50 guardas armados entrarem num edifício público e dispararem para o ar (...), numa região em que em qualquer manifestação ou funeral se vê gente a disparar para o ar? Não haverá no título (e no texto) alguma da influência ideológica que os “jogos de guerra” sempre acabam por irradiar?

O director discorda: “Terá de se escrever sempre Governo da França e não Governo Villepin? Governo italiano e não Governo Berlusconi? Governo britânico e não Governo trabalhista? O Governo é da Palestina e é formado pelo Hamas, ambas as formulações são certas. Ter sublinhado que era do Hamas era significativo, pois tratou-se de um protesto de polícias, agentes desse Governo mas aparentemente fiéis ao Governo anterior. Já a classificação como violento é relativa, mas sendo polícias não me parece despropositada.”

O leitor J. B. César fez uma das duas leituras possíveis. É verdade que o facto de se mencionar o governo de um partido (caso do MPLA, por exemplo, em Angola) significa, por vezes, que o partido em causa detém o poder sem a sanção eleitoral, mas, por outro lado, é usual os jornalistas recorrerem à expressão “o Governo PS” ou “o Governo Berlusconi” mesmo quando uns e o outro foram legitimados pelas urnas.
Quanto ao “protesto violento”, o leitor tem razão. O próprio provedor já assistiu a um casamento no Sul da Índia com rajadas de AK-47 (Kalashnikov). Ao que apurei na altura, os disparos para o ar eram uma manifestação de influência portuguesa…


“Operação Páscoa já fez dois mortos e 15 feridos” (pág. 25) – Grande marota essa Operação Páscoa! Fazer dois mortos e provocar 15 feridos é terrível! Vamos já ao texto ver quem é o maligno autor da mortífera “operação”! Mas... Poderá lá ser!? O texto da notícia informa-nos que a “Operação Páscoa 2006 [está a ser] levada a cabo pela Brigada de Trânsito da GNR de todo o país”! E, então, será que foi essa operação, a realizada pela GNR, que, conforme diz o título, fez os dois mortos e os 15 feridos? Não. Claro que não foi. Mas, então, por que é que é exactamente isso que nos diz o título da notícia?

José Manuel Fernandes responde: “Toda a razão quanto ao título, manifestamente infeliz.”

Nada a acrescentar.

“Região Norte cria cluster na área médica e farmacêutica” (pág. 42) – Da leitura deste título apenas fico a saber que, contra o que eu imaginava, existe uma “Região Norte” que cria coisas, e que tanto a médica como a farmacêutica possuem uma área, que se deduz comum. Apenas não consigo imaginar o que será o tal “cluster” criado pela “Região Norte”. Por ser grafado sem aspas e sem itálico, é porque se tratará de um termo genuinamente português. E tão genuíno e enraizado na linguagem nativa que seria até ofensivo para a sua popularidade qualquer tentativa de explicação do seu significado pela generalidade dos dicionários de Língua Portuguesa existentes no mercado, que, por isso, se dispensaram fazê-lo. Mas como poderá haver neste nosso tão ilustrado país outros ignorantes que, como eu, apenas possuem os comuns dicionários de Língua Portuguesa para se defenderem das dúvidas que a língua (é a portuguesa, ainda, não é?) por vezes lhes apresentam, agradecia que explicasse o que é, afinal, o “cluster” anunciado no título e para o qual o texto não dá significado. E, aproveitando, que explicasse também o que significa o “know-how” que, embora em itálico, também trunca o entendimento do dito texto aos iletrados leitores que apenas falam português e, por isso, se limitam a ler a imprensa portuguesa. E, se não for maçada, também gostaria que a jornalista, ou por ela o seu editor, informasse o que é a “Região Norte” a que se reporta no título e sobre a qual a peça também não dá detalhes. É que desconheço quando foi criada, se a sua acção administrativa se estende até Vimioso ou se confina ao Porto, se foi eleita ou nomeada, etc. E, já agora, que esclarecesse se quando escreveu “na área” não quereria dizer “nas áreas”. Embora desejasse não ser “pesado”, não posso deixar de perguntar, ainda, por que é que o “porta-aviões” do título da caixa do texto não se grafou entre aspas e, finalmente, por que é que, nesse mesmo título “Bial” foi grafado com todas as letras em maiúscula, ao contrário do que acontece no corpo da notícia e tal como em uso pela própria empresa.

O director explica:
a) existe realmente uma Região Norte, mas apenas uma região de planeamento sob a alçada da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDRN). Não é uma região administrativa (o povo chumbou a regionalização em referendo), mas tem uma existência idêntica, ou mesmo mais forte, no que diz respeito à organização do Estado que um distrito e,
seguramente, que uma província. Tratando-se de um projecto da CCDRN parece-me correcto referir-se a área de intervenção como Região Norte.
b) O termo cluster não consta do Livro de Estilo, por isso não temos uma regra adoptada. Trata-se de um termo económico muito vulgarizado, um claro anglicismo, mas que pode vir a ter o mesmo destino de outros termos, como marketing, por exemplo, que ninguém grafa em itálico ou entre aspas.
Aceito contudo que a sua utilização, sobretudo num título, mesmo que na secção de economia, seja discutível.
c) O tema dos anglicismos ou dos termos de origem anglo-saxónica adoptados pelo português daria um tratado. O leitor adopta a atitude conservadora, por vezes exagera-se numa espécie de “novo-riquismo” onde só parece ficar bem utilizar termos ingleses a torto e a direito. A virtude estará a meio termo. No caso do texto em causa, lendo-o todo, julgo que não se exagera: bem sei que know-how é o mesmo que “saber fazer” em termos literais, mas que também não é exactamente o mesmo no sentido económico do termo.
d) O leitor ironiza por existir uma “área” médica e farmacêutica. Teria razão se nos títulos não se tivesse de ser conciso e se pudesse, em alternativa, escrever, por exemplo, “Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte cria iniciativa para estimular áreas de excelência nas indústrias farmacêuticas ou ligadas à medicina”. Ou seja, se o título pudesse ter 161 caracteres em lugar de 50. Faz alguma diferença em espaço necessário, mas julgo que não no sentido da notícia, que não é deturpado pelo título.”

O director tem e não tem razão. “Cluster” não diz nada a 99 por cento da população e um título deve ser claro, explícito e informativo.
Ao utilizar a palavra “cluster”, o PÚBLICO parece dirigir-se a leitores anglo-saxónicos e não portugueses, de cuja latinidade ninguém duvida…

domingo, abril 16, 2006 

FUTEBOL (SEM FADO)

O futebol é o único desporto que suscita comentários por parte dos leitores. E é natural que assim seja. A extraordinária popularidade alcançada por esta modalidade prende-se com a competição, a planificação, o trabalho de equipa, a divisão de tarefas (à imagem do mundo industrial de que é historicamente o produto) e a propagação de valores como o mérito e a solidariedade (independentemente do factor sorte, das decisões arbitrárias e do negócio, sempre omnipresentes), sem contar com a componente emotiva, que é primordial...
O espectáculo da bola revela-nos, por outro lado, as principais características dos grupos, já que é um campo privilegiado para a afirmação das identidades colectivas e dos antagonismos locais, regionais e nacionais – pelo menos é o que defendem os etnólogos do Centre National de la Recherche Scientifique de França.

Passemos aos comentários dos leitores e às respostas da Redacção.

Sendo eu um conhecedor profundo do PÚBLICO em inúmeros detalhes, conhecendo também o Livro de Estilo e a cultura da casa, não pude deixar de ficar atónito com as notícias escritas a propósito do Sporting-Porto.
No texto principal, dizia-se que a equipa do Norte só teve uma oportunidade de golo, que concretizou, mas na página ao lado escrevia-se que houve mais oportunidades.
Como desde sempre gostei de ler as notícias sobre futebol do PÚBLICO, as quais alteraram a forma de escrita dos jogos até então – até 1990 era cronológica – fiquei deveras espantado, e como não vi o jogo fi quei baralhado.
É um detalhe eu sei, mas o jornalismo é feito de detalhes e, já agora, que me recorde em peças assinadas por duas pessoas, cada uma costuma ler o que a outra escreveu.
Imagine, caro provedor, algo semelhante a propósito, por exemplo, das eleições em Itália, sem golos, mas com votos...,
escreve o leitor João Seabra.

Todas as notícias são importantes e exigem rigor, mas o leitor só parcialmente tem razão.
É legítimo perguntar se o resultado de um jogo de futebol pode ser comparado ao desfecho de umas eleições e ao destino de um país. Ainda que no tempo do dr. Salazar a política estivesse reduzida ao fado e ao futebol...

Eis a resposta de Paulo Curado.


“As limitações de horário de fecho do jornal não permitem, de facto, que cada um dos cronistas leia, antes de enviar o trabalho, o(s) texto(s) do seu parceiro, ainda que comuniquem entre si no decorrer da partida.
O erro em questão na crónica principal (onde erradamente se diz que o FC Porto só beneficiou de uma oportunidade de golo em todo o encontro e não de duas como seria correcto e é, aliás, mencionado num outro texto da página) foi, no entanto, detectado posteriormente, mas não a tempo de ser emendado antes de a página ser enviada para a gráfica. Pelo lapso pedimos as nossas desculpas”, respondeu o jornalista.

A explicação é aceitável.

Os textos sobre partidas de futebol iniciam-se invariavelmente sobre as expectativas dos treinadores e adeptos, fazem um comentário sobre as disposições tácticas e avançam para a crónica.
Nesta fala-se ao pormenor do “encaixe” dos sistemas tácticos, da mentalidade atacante, etc.
A primeira parte das partidas é assim dissecada ao pormenor. Já no caso da segunda parte temos sempre um texto curtíssimo, independentemente da
importância que tenha tido no jogo. O resultado pode ter sido de 3-3 com todos os golos marcados na segunda parte que, após todo o texto sobre a primeira parte, a segunda será garantidamente varrida com dois adjectivos e um comentário sobre os golos e substituições.
Sem ser científico será provável que a extensão da primeira parte seja feita em 80 por cento do texto, com a segunda a merecer não mais que os restantes 20 por cento.(…)
De um ponto muito específico, chamo a atenção para o incrível pedaço de mau jornalismo com o título “
Figo não defronta o Villarreal, Lyon não conta com Juninho”, de Luís Octávio Costa(29 de Março de 2006).
Nesta peça, temos uma sucessão incrível de asneiras.

Começa com o primeiro parágrafo: “Luís Figo não recuperou da lesão (...) e falhará os quartos-de-final da Liga dos Campeões...”
Primeiro assume-se que a lesão não seria grave e que por pouco não permitiu a recuperação do jogador: “
Luís Figo não recuperou da lesão”, pelo que se imagina que poderá recuperar em breve.
Depois, no entanto, diz-se que o jogador “
falhará” os quartos-de-final. Ora, tendo os quartos-de-final dois jogos, é possível que o jogador recupere a tempo do segundo, pelo que não falharia os quartos-de-final, mas apenas a primeira mão.

No segundo parágrafo: “
duelos entre dois clássicos italianos”. A expressão “clássico” é usada, em geral, para designar um jogo entre duas equipas históricas. Um jogo entre o Inter e o Milan (os tais ‘“clássicos”) seria um clássico. Uma referência aos clubes deveria ser feita com recurso a “históricos”.
Ainda no segundo parágrafo: “
o Villarreal (oitavos na Liga espanhola e novato nestas andanças)”.
O clube Villarreal passa de singular – “o” – a plural – “oitavos” – e de novo a singular – “novato”. Há que ter rigor.

No terceiro parágrafo são transcritas declarações de Diego Forlán (a cujo nome falta o acento), sendo que este é “naturalizado” italiano a fechar o dito parágrafo.

Quarto parágrafo: “O Inter não ganha nada desde 1989”, recordou Manuel Pellegrini, confiante no jogo em San Siro, apesar das ausências de Tacchinardi, Moreno e Arruabarrena.
“Há equipas com mais títulos, mas o Villarreal está a construir agora a sua história”, avisou Cambiasso.
Não é feita uma referência a quem são Pellegrini (técnico do Villarreal) ou Cambiasso (jogador do Inter).
Na ausência de informação fica a dúvida sobre a intenção de escrever estas declarações.

Quinto parágrafo, o melhor naco desta prosa: “estarão frente a frente a frescura do Lyon e a experiência do Milan, que nunca passou dos ‘quartos’ da Champions, prova que o AC Milan já venceu seis vezes.”
Temos então que o Milan é experiente mas nunca passou dos quartos da ‘Champions’ (porque não usar o termo português, já agora?), mas afinal até já ganhou a prova seis vezes (o que até é falso, uma vez que algumas das vitórias foram no formato anterior, de Taça dos Campeões Europeus, mais uma vez falta de rigor).
O texto está simplesmente mal escrito.
Qualquer professor de português do segundo ciclo reprovaria imediatamente uma escrita destas numa composição.

Ainda no sexto parágrafo: “
Juninho (castigado), o ‘melhor do mundo’ na cobrança de livres.”
As aspas indicam que se estaria a citar alguém. Quem, então? Outra hipótese seria ter o jornalista exprimir uma opinião pessoal (o que não deve fazer) ou um ponto de vista generalizado (para o que não deveria usar uma notação idêntica à das citações). (...)
Há que ter atenção a estes pormenores, sob risco de se perder os leitores, escreve João Sousa André.

Pedi uma resposta ao editor do Desporto, em Lisboa.

“No que se refere à escrita nos textos sobre partidas de futebol, e quanto ao seu início (diz o leitor que “invariavelmente”), tenho que discordar.
A parte informativa compreende as palavras-chave – isso sim, invariavelmente.
Depois entra o estilo do jornalista na sua apreciação do encontro – a crónica do espectáculo, que o é, seja ele bom ou mau. Finalmente, e aqui estamos de acordo, a percentagem da primeira parte poderá não corresponder à da segunda. A explicação é simples: nos anos mais recentes o futebol tem sido dominado – literalmente – pela televisão. É esta que “manda”, nos dias e nas horas do seu início. O futebol nocturno entrou no nosso quotidiano, de segunda-feira a domingo, entre as 19h45 e as 21h30. Ora, compreenderão os leitores que o tempo útil para o trabalho do jornalista entre o final dos encontros, que frequentemente passa das 23h15, e o fecho da edição é muito limitado, pelo que a elaboração da crónica é realizada em tempo real, enquanto decorre o jogo, sendo iniciada durante o intervalo dos encontros. Daí que, frequentemente, haja desequilíbrios nas percentagens dedicadas à primeira e segunda partes. Os condicionalismos técnicos assim o obrigam.
Quanto aos golos, novo desacordo: não é preciso fazer contas de cabeça, pois o resultado é sempre expresso, quer no título, na entrada, ou no lead do próprio texto”, contestou Carlos Filipe.

O editor Bruno Prata, do Porto, complementou a resposta.

“(...) As novas tecnologias vieram facilitar bastante o nosso trabalho nesta área, mas, em contrapartida, são cada vez mais apertados os horários de fecho do jornal. De facto, muitas vezes acontece termos de ter o texto pronto mal o jogo acaba, o que – garanto – não é uma tarefa fácil. (...)
Este problema nos jogos de futebol, de resto, não é um exclusivo do PÚBLICO e afecta a generalidade da imprensa. (...) Em relação ao texto que o leitor dá como exemplo, há de facto algumas gralhas e erros lamentáveis.
Após ter sido dado como concluído pelo jornalista, o texto foi enviado directamente para a revisão, mas nem isso bastou para resolver o problema. Cabe-nos, por isso, pedir desculpa aos leitores e deixar a promessa de que tudo faremos para que estas situações não se repitam”, escreveu Bruno Prata.

As explicações destes dois responsáveis são aceitáveis.
O PÚBLICO reconhece os erros. E deve evitar repeti-los.

domingo, abril 09, 2006 

INFORMAÇÃO OU SENSACIONALISMO? - EPÍLOGO

A última crónica do provedor (intitulada “Informação ou Sensacionalismo?”) motivou um pedido de resposta da editora da secção Nacional do PÚBLICO, São José Almeida.

Meu caro Rui Araújo,
Fiquei e estou ainda perplexa com o que li na tua coluna de provedor do leitor hoje. Uma página a desfazer uma notícia que foi por mim editada na secção de que sou editora. Uma noticia sobre uma nomeação de um sobrinho do vice-presidente do STA para seu assessor.
Concordo que o título e a chamada poderiam dizer que ele escolheu ou indicou o sobrinho. Agora o que me deixa perplexa são outras duas coisas.
A primeira é que cedas à tese de que o que é prioritário em relação a essa notícia é a diferença entre ele ter escolhido e não nomeado. Ele escolheu um sobrinho, um acto que não é ilegal, mas é questionável do ponto de vista ético, por configurar uma situação clara de nepotismo. Não acredito, pelo que conheço de ti, que não consideres grave este tipo de comportamento da parte de quem ocupa lugares de Estado. Por isso não percebo que dúvidas é que a notícia te levanta quanto ao conteúdo. Houve uma nomeação de um sobrinho por escolha do tio para seu assessor, sem ter de ser submetido a provas para aceder a um lugar público. Mas o provedor acha grave que o PÚBLICO e a editora da secção em causa tenham posto em título que ele ‘nomeou’ em vez de ‘escolheu’ ou’ indicou para ser nomeado’. E considera que a editora é sensacionalista.

Resposta do provedor:

1- São José Almeida reconhece, portanto, que “o título e a chamada poderiam dizer que ele escolheu ou indicou o sobrinho” em vez de “nomeia” (como foi erradamente escrito).
A formulação correcta seria, aliás, “deviam dizer” e não “poderiam dizer”: quem nomeia é o presidente; o vice-presidente apenas indica o nome.
É um detalhe, mas no jornalismo as palavras, à semelhança dos factos são importantes.

2- Ao contrário do que afirma a editora nunca afirmei que esta imprecisão era prioritária.
O que disse e repito é que se trata de uma das imprecisões que ilustram falta de rigor.

Exemplos:
O título “TRIBUNAIS SUPERIORES - Vice do Supremo Administrativo nomeia sobrinho para assessor” é duplamente incorrecto porque o juiz-conselheiro não nomeou ninguém (limitou-se a indicar simplesmente um nome) e, por outro lado, não se trata de um cargo de “assessor”, mas de secretário pessoal. É diferente…
Um assessor presta apoio técnico e um secretário pessoal “o apoio administrativo que lhe for determinado”.

De resto, os títulos (de primeira página e da própria notícia) estão em contradição com o corpo da notícia em que o “assessor” passa a “secretário pessoal”. Em que ficamos?

Há ainda outras contradições:

3- Escreve o PÚBLICO: “O juiz-conselheiro Domingos Brandão de Pinho, vice-presidente do Supremo Administrativo, nomeou o sobrinho, Tiago Filipe Brandão de Pinho, para seu assessor, sem concurso público. O Supremo Tribunal acha normal.”

A chamada, para além de repetir os erros contidos no título (“nomeou o sobrinho” “para seu assessor”) refere que a nomeação foi feita “sem concurso público”, omitindo que o referido concurso público não é necessário.
A omissão é uma forma dúbia de insinuar que devia haver concurso público. Isso não é informação. É opinião. A mesma opinião é erradamente repetida no final da chamada
(“O Supremo Tribunal acha normal.”).
O Supremo Tribunal só constata o cumprimento do que determina a lei.

4- O provedor limita-se a perguntar se é legítimo questionar a honorabilidade de alguém que não violou a lei?
A editora da secção Nacional do PÚBLICO confirma no seu pedido de resposta o receio do provedor: “(…) Ele escolheu um sobrinho, um acto que não é ilegal, mas é questionável do ponto de vista ético, por configurar uma situação clara de nepotismo. Não acredito, pelo que conheço de ti, que não consideres grave este tipo de comportamento da parte de quem ocupa lugares de Estado.”

São José Almeida defende que a escolha do sobrinho configura “uma situação clara de nepotismo”.
É uma opinião. O provedor acredita que o PÚBLICO optou inesperadamente pela presunção de culpa (baseada em opiniões) em detrimento da presunção de inocência.

Em contrapartida, os jornalistas não questionam a lei que permite tais situações.

O provedor contesta a forma pouco rigorosa como os factos foram narrados, a omissão de informação, a confusão entre notícia e opinião bem como a falta de enquadramento.
O PÚBLICO errou.
O provedor, por outro lado, nunca acusou a editora de sensacionalismo.

A editora escreve ainda:

Agora a segunda perplexidade. Por que razão não falaste comigo sobre o que ias escrever? Por que razão não fui informada de que o tema da tua coluna era os meus critérios de edição e de titular notícias? Por que razão, se o director do jornal fala de mim na sua resposta e me indica como responsável, não sentiste a mínima obrigação de me perguntar nada? Por que razão passaste por mim, mais concretamente pela minha secretária comigo lá sentada, me cumprimentaste até, mais de uma vez durante toda a semana e nunca achaste necessário dizer-me que ias escrever sobre mim?
Não compreendo o que se passou. Apenas posso dizer que não acho ético da tua parte este comportamento.
Sabes bem que o responsável pelo que sai nas páginas de cada secção do PÚBLICO é o editor e que no caso do NACIONAL a responsável sou eu, já falaste comigo por outras situações anteriores e por isso devias ter falado comigo, agora.
Mais: o director indica-me como responsável pela notícia e pões essa responsabilização no teu texto.
Acho no mínimo bizarro que me acuses na prática de sensacionalismo, relativizes um acto de nepotismo num órgão superior do Estado, e não tenhas sentido a obrigação de me ouvir. Que eu saiba, quando se acusa uma pessoa é lhe dada a possibilidade de se defender. Ou não concordas?
Por uma questão obvia de reparação pública do meu bom nome, solicito a publicação desta missiva na íntegra na tua coluna de provedor do leitor do PÚBLICO do próximo domingo. É o mínimo que podes fazer depois do que se passou.


Resposta do provedor:

Perplexidade ou processo de intenções ao provedor…

A pergunta da editora (“Por que razão passaste por mim, mais concretamente pela minha secretária comigo lá sentada, me cumprimentaste até, mais de uma vez durante toda a semana e nunca achaste necessário dizer-me que ias escrever sobre mim”) não faz sentido.

1- O artigo em causa só foi publicado na quinta-feira e o leitor só escreveu ao provedor na sexta, à hora de almoço.
A editora reconhecerá que era difícil dizer-lhe “durante toda a semana” que ia escrever uma crónica sobre um artigo (que ainda não tinha sido publicado) e um comentário de um leitor (que ainda não tinha recebido)…

2- Na sexta-feira permaneci no jornal escassos minutos. Só ao fim da tarde contactei por telefone e seguidamente por e-mail a jornalista Tânia Laranjo e o director do PÚBLICO.
Só comecei a escrever a crónica na madrugada de sábado (agradecendo por e-mail a colaboração
da jornalista às 03H05 e a do director às 03H56).

Mas esta informação é pouco relevante.

O responsável da primeira página em causa (títulos e chamadas) era o director do PÚBLICO e não a editora da secção Nacional.
José Manuel Fernandes reconheceu que tinha lido a referida chamada e reduzido o título da notícia (o provedor só contactou a jornalista para apurar detalhes técnicos sobre a elaboração do texto).
Não havia pois qualquer razão para contactar a editora.
De qualquer modo, a explicação ora facultada por São José Almeida só confirma o conteúdo da crónica do provedor da passada semana.
Escreve a editora: “Acho no mínimo bizarro que me acuses na prática de sensacionalismo, relativizes um acto de nepotismo num órgão superior do Estado, e não tenhas sentido a obrigação de me ouvir.”

Mais uma conclusão arreliadora. A editora considera a interrogação do título da crónica do provedor (“Informação ou Sensacionalismo?”) uma afirmação…

O provedor não acusou a editora, que não devia sentir-se visada, porquanto o responsável pela primeira página é o director.

A opinião do provedor sobre o “acto de nepotismo num órgão superior do Estado” (assinalado pela editora da secção Nacional) é irrelevante.
Mais uma vez o que está em causa é exactamente o facto de se ter confundido opinião (que é livre) com factos que são sagrados.

A opinião de São José Almeida, partilhada pelo director do PÚBLICO (com algumas nuances), é legítima, mas é só isso: uma opinião.

Os títulos, a chamada e a própria notícia contêm inúmeras imprecisões, omissões graves e contradições flagrantes. E lançam um anátema sobre um cidadão. É isso que o leitor denunciou e o provedor considera pertinente.

A editora invoca a “reparação pública” do bom nome. É um direito que lhe assiste, reconhecido a todos os cidadãos, incluindo o vicepresidente do STA. ■

POST-SCRIPTUM: O facto de o provedor do leitor criticar este tipo de jornalismo (praticado acidentalmente no PÚBLICO) não pode nem deve ser interpretado como a aprovação da escolha do vice-presidente do STA.
Enquanto cidadão considero que um alto funcionário não deve escolher um familiar para o exercício de um cargo na administração pública.
Domingos Brandão de Pinho não violou a lei, mas descurou a ética.

domingo, abril 02, 2006 

INFORMAÇÃO OU SENSACIONALISMO?

O texto intitulado “Vice-presidente do Supremo Administrativo nomeia sobrinho para seu assessor” (publicado na passada quinta-feira) suscitou dois comentários.

O PÚBLICO está a virar blogue?
De há algum tempo a esta parte, tenho vindo a constatar, com algum pesar pois considero o PÚBLICO um dos melhores diários do mercado, que o ‘meu’ jornal, na sua natural evolução, se transmuta, de tempos a tempos, numa espécie de blogue.

A edição de quinta-feira, 30 de Março, constitui, parece-me, exemplo paradigmático, tanto que me senti impelido a escrever estas linhas. É que de vez em quando, em vez de notícias, sou, enquanto leitor, brindado com verdadeiros posts, só aceitáveis na blogosfera onde os critérios – quando os há! – são outros que não o jornalístico.

Permito-me apresentar o exemplo de quinta-feira, por exemplificativo.Na primeira página da edição que tenho nas mãos há uma chamada onde se pode ler que oVice do Supremo Administrativo nomeia sobrinho para assessor’. Acresce que o fez ‘sem concurso público’ e que ‘o Supremo Tribunal acha normal’. Ora, uma nomeação familiar, ainda por cima sem concurso público e menosprezada pelo Supremo Tribunal, é algo que chama à atenção. Daí que folheei o jornal até à página 12, como indicado na capa, para ler a continuação da estória.

Depois de um romanceado primeiro parágrafo, adocicado, confesso, pela nomeação ilegal do sobrinho pelo tio juiz conselheiro, fiquei surpreendido quando verifiquei que a primeira coisa que a jornalista Tânia Laranjo me disse foi que, afinal, a nomeação não fora efectuada pelo tio mas sim por Santos Serra, presidente do Supremo Tribunal Administrativo – o que, manifestamente, não era o que constava na capa da edição.Por outro lado, terminava aquela mesma frase vincando que a nomeação, feita pelo Presidente e não pelo tio, fora efectuada ‘sem passar por qualquer concurso público’. É preciso avançar dois parágrafos para perceber que esta formalidade – extremamente gravosa, naturalmente – afinal, não era necessária pois ‘não é sujeito a concurso público, precisamente por ser um cargo que implica confiança pessoal’. Ou seja, a preterição do concurso público, ao contrário do que parece apontar a chamada da capa, não traduz nenhuma ilegalidade, pelo contrário.

Convenhamos que é praticamente impensável aceitar que o PÚBLICO, numa chamada de primeira página, seja sensacionalista ao ponto de distorcer de forma tão grosseira dois factos essenciais na mensagem que pretendia passar (não só não foi o tio que nomeou o sobrinho, como não houve concurso público, não porque devesse haver mas porque não era exigível naquela nomeação), pelo que só pode tratar-se de um lapso. Daí este meu alerta.Ainda por cima, esta falta de rigor, talvez aceitável num blogue mas dificilmente compreensível num diário de referência, parece continuar ao longo do artigo.É que logo de seguida é dito que Tiago Brandão Pinho ‘alegadamente’ possui uma licenciatura em Direito quando o parágrafo seguinte termina com uma referência ao ‘licenciado’: em que ficamos então? O sobrinho é ou não licenciado?
A jornalista discorre ainda sobre a situação dos outros dois vice-presidentes do tribunal mas, logo depois, afirma que a instância é constituída por presidente e vice-presidente: então dos três enumerados na notícia só um pertence àquele tribunal? Então porque foram referidos?

Mas bastante mais séria, na minha opinião, foi a atitude da jornalista, especialista em matérias de justiça, que desconhece seguramente o que se passou em 1789, o que trouxe a Revolução Francesa e o que é a separação de poderes, pedra basilar de um Estado de Direito Democrático (como o nosso, embora às vezes não pareça).

Cuidando de uma nomeação familiar (que afinal não foi), sem concurso público (não porque preterido, mas porque a ele não havia lugar), no quadro próprio de um tribunal superior, o PÚBLICO contactou o Ministério da Justiça???Não tenho qualquer dúvida que uma nomeação em que seja preterida a formalidade legal tenha interesse jornalístico. Concedo até que uma nomeação familiar o possa ter, ainda que reduzidamente num caso de confiança pessoal justificado?Mas o que me custa mesmo ver e aceitar é a apresentação dos factos desta forma, conduta habitual noutro tipo de publicações.

É este o caminho que o PÚBLICO leva? Vender, não pela qualidade da informação mas pelas 'gordas'?Esta notícia parece ter sido ‘pescada à linha’. Umas afirmações do chefe de gabinete do presidente do tribunal, um contacto com o ministério da justiça (aparentemente porque se tratava de um tribunal, logo uma notícia relacionada com a justiça), tudo recebido de forma mecânica, transposta para a notícia e com o título, que não corresponde à estória, a servir de isco… Por favor, não caiam na tentação de serem um blogue com posts!, escreve Diogo Madeira.

As questões colocadas pelo leitor são pertinentes.
Eis a chamada de Primeira Página em questão: “TRIBUNAIS SUPERIORES - Vice do Supremo Administrativo nomeia sobrinho para assessor O juiz-conselheiro Domingos Brandão de Pinho, vice-presidente do Supremo Administrativo, nomeou o sobrinho, Tiago Filipe Brandão de Pinho, para seu assessor, sem concurso público. O Supremo Tribunal acha normal.”

O provedor perguntou a José Manuel Fernandes, director do PÚBLICO, qual a explicação para o desfasamento entre o título e a chamada de Primeira Página, por um lado e, pelo outro, o corpo da notícia?

Não me parece que haja contradição entre a chamada e a notícia. Os títulos das páginas 1 e 12 são idênticos, havendo grande coincidência entre o conteúdo do texto da chamada e a entrada da notícia.

Há uma imprecisão no título (a nomeação foi formalmente feito pelo presidente, contudo presume-se que a escolha foi feita pelo vice, pelo que o sentido do acto administrativo não foi deturpado). Também não me parece ser errado sublinhar que não houve concurso público (e não houve) só porque ele não era necessário.

Tratando-se da nomeação de um sobrinho para um lugar importante, o facto de este ser um lugar de confiança não afasta a suspeita de nepotismo precisamente porque tal nomeação não resultou de um concurso, mas de uma escolha pessoal. Pode não ser nepotismo, mas parece-me que, a um juiz de um tribunal superior, se deve aplicar a mesma máxima que se aplicava à mulher de César: não basta ser honesta, deve parecer honesta.

O erro que envolve a separação de poderes não vem na primeira página.
Esclareço ainda que, no caso desta notícia, confiei na editora e na jornalista e não a li antes de ser publicada. Apenas li a chamada que foi enviada para a capa, a qual viu o título reduzido, mas o texto saiu tal e qual, assim como reparei que os dois títulos eram idênticos. Não procedi à rotina de ler todos os textos que têm chamada de primeira por absoluta falta de tempo no fecho do jornal.

Continuo a pensar que a notícia tem interesse e que a carta publicada sexta-feira assinada pelo Chefe de Gabinete do Supremo Tribunal Administrativo é preocupante pelo que revela sobre a mentalidade do Presidente desse tribunal superior, onde restarão muitas teias de aranha vindas do tempo da outra senhora”, respondeu o director do PÚBLICO.

Há, portanto, imprecisões. E não deixa de ser surpreendente que o responsável pelo título e a chamada da primeira página do jornal tenha optado por uma presunção de culpa. Trata-se no mínimo de uma subversão de princípios, inclusive éticos e de deontologia.
O provedor considera que se pode criticar quando muito a lei, mas não a honorabilidade de quem se limitou a cumpri-la.
Quanto aos trâmites de que o texto foi objecto no jornal ficamos sem saber quem é o primeiro e único responsável pelo título e a chamada de primeira página – ambos questionáveis, de resto.

Mas ficaram mais coisas por esclarecer.
Independentemente de não ser requerida uma licenciatura para o exercício do cargo - o que torna o detalhe descrito no texto supérfluo – o provedor perguntou a Tânia Laranjo com que fundamento contactou o Ministério da Justiça, à luz da separação de poderes.
A jornalista respondeu: “Contactei o Ministério da Justiça porque se trata de uma nomeação de um cargo que depende organicamente do Ministério da Justiça. O Ministério da Justiça explicou que havia um orçamento próprio e que não lhe cabia vetar ou aprovar a nomeação e foi isso que foi escrito”.

Se não cabia ao Ministério da Justiça vetar ou aprovar a nomeação em que é que é que ela pode depender organicamente do Ministério da Justiça?
A explicação de Tânia Laranjo deixa margem para dúvidas. E o texto em vez de esclarecer, confunde.

Um outro leitor questiona a fonte do mesmo texto.
Tania Laranjo escreveu na edição de ontem (30-03-06) a peça: Vice-presidente do Supremo Administrativo nomeia sobrinho para seu assessor’ a qual tem como fonte estes dois links:
1. http://ablasfemia.blogspot.com/2006/03/estado-em-famlia.html
2. http://ovilacondense.blogspot.com/2006/03/mo-que-embala-o-bero.html
Ficava bem, e era mais correcto citar a fonte. Ou não?, pergunta o leitor Gabriel Silva.
Os dois blogues citados anunciaram de facto o despacho da nomeação 10 e 13 dias antes respectivamente de a notícia ser publicada no PÚBLICO, mas de acordo com Tânia Laranjo a sua fonte foi o Diário da República.

O texto contém, pelo menos, uma imprecisão e levanta inúmeras dúvidas.
Se é notícia e merecia um destaque de primeira página é algo que não compete ao provedor decidir.

Sobre o blog

  • O blogue do Provedor do Leitor do PÚBLICO foi criado para facilitar a expressão dos sentimentos e das opiniões dos leitores sobre o PÚBLICO e para alargar as formas de contacto com o Provedor.

    Este blogue não pretende substituir as cartas e os e-mails que constituem a base do trabalho do Provedor e que permitem um contacto mais pessoal, mas sim constituir um espaço de debate, aberto aos leitores. À Direcção do PÚBLICO e aos seus jornalistas em torno das questões levantadas pelo Provedor.

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