"FALEMOS SERIAMENTE" - COMENTÁRIO DO LEITOR ROBERTO GORJÃO
"Oito em cada dez jornalistas têm dificuldade em redigir uma notícia ou em seguir o raciocínio dos seus entrevistados. Se a matéria da notícia se basear em textos previamente redigidos por outras entidades, os estudos neuropsicológicos e cognitivos realizados pela Castelos no Ar nas últimas setenta e duas horas demonstraram que a maioria dos jornalistas analisados, apesar de aparentemente normais, apresentaram dificuldades de interpretação acima do esperado. Alguns dos nossos investigadores apontam porém, como prováveis causas para tais inusitadas dificuldades, o péssimo clima organizacional e o stress imposto pela maioria dos jornais e revistas aos seus profissionais, factores que explicam que os ‘jornalistas se vejam obrigados a escrever sobre o que afinal não tiveram tempo para assimilar e compreender correctamente’. Por enquanto, todavia, esta deve ser considerada apenas como uma hipótese especulativa e carecendo de mais estudos comprovativos. Entretanto, a nossa posição oficial é a de que ‘existe uma deficiência nos métodos jornalísticos, métodos que não são compatíveis com a capacidade de processamento de informação do cérebro da grande maioria dos jornalistas’."
Qualquer semelhança entre a caricatura anterior e o artigo "Oito em cada dez alunos com insucesso escolar têm dificuldade em seguir raciocínio de professores", publicado pelo Público com base numa notícia da LUSA, no passado dia seis de Agosto, é absolutamente intencional. Tal como é intencional e assumida a sugestão de incapacidade (quaisquer que sejam as razões que a justificam), de pelo menos o jornalista (ir)responsável, apenas para não dizer da maioria ou da quase totalidade dos jornalistas e respectivas entidades empregadoras que têm tratado o tema da educação nos últimos tempos! Mas, para que a crítica não se fique apenas pelo burlesco da introdução, passo a justificar-me utilizando como ilustração a pérola jornalística citada.
A autoridade da fonte
A entidade repetidamente apresentada como, simultaneamente, fonte e autoridade avalizadora das informações veiculadas no artigo dá pelo nome de “Instituto de Inteligência”. A expressão “Estudos elaborados pelo Instituto da Inteligência” aparece como uma espécie de subtítulo encabeçando o artigo do Público e as referências àquela entidade repetem-se por quatro vezes no respectivo corpo do texto. No entanto, em momento algum é descrita a natureza da instituição: é uma entidade pública? Privada? Se é pública, está relacionada com algum ministério ou universidade? Se é privada, tem fins lucrativos? É uma pessoa colectiva? Nada! A credibilidade do Instituto é aparentemente garantida apenas pela sua sonante designação, sem dúvida fazendo lembrar uma séria e sólida organização pública, provavelmente na directa dependência do Ministério da Educação ou, eventualmente, do da Saúde. O leitor é claramente induzido em erro e o próprio jornalista parece sentir-se à vontade para questionar a competência de 120.000 professores portugueses, solidamente encostado que está ao lustre de tão insigne nomeada.
Acontece todavia que o Instituto da Inteligência é afinal uma organização privada, com fins lucrativos e sede no Porto, cuja personalidade jurídica (colectiva ou individual) não é esclarecida nem pelo próprio sítio web, e, para o descobrir, bastaria uma simples pesquisa no google. É supostamente herdeiro de um outro Instituto, Maxman, fundado na República Eslovaca, sobre o qual é virtualmente impossível obter qualquer informação na net (num blogue do Instituto aparece todavia uma referência a uma empresa de consultores Maxman, sua cliente, também eslovaca). De acordo com o sítio web do Instituto “a sua organização assume a forma de rede, com colaboradores e empresas associadas espalhadas por vários países”. Esta multifacetada organização é todavia, aparentemente, incapaz de investir num sítio web condigno, preferindo optar por alojar a sua informação promocional em servidores gratuitos e uma multiplicidade de blogues ( Treze, só no “blogger”). Um pormenor curiosíssimo do sítio web do Instituto é conter um contador que me indicou ser o visitante número 123.456.789… No mínimo, uma notável coincidência! Infelizmente, outras visitas posteriores deram-me a conhecer que o contador afinal não se actualizava ou… talvez tivesse atingido o seu limite. De acordo com a informação patente no respectivo sítio, o Instituto integra vários departamentos, todos muito originais: o que mais me cativou foi a ” Academia do Futuro” a qual, “através de pesquisa, análises, seminários, apresentações, relatórios e newsletters, fornece conselhos sobre o futuro” a “companhias, associações e governos” (Engenheiro Sócrates, por que espera?!!). Senti-me também muito atraído pelo ” Centro Português de Neurofitness” o qual, entre outras coisas, ensina a prática da “neuróbica” para exercitar o cérebro e aumentar a sua eficiência (President Bush, what are you waiting for?!!… Hum… É capaz de haver limites, mesmo para a neuróbica!). Se o Neurofitness se converter para si em, mais do que uma paixão, uma missão, saiba que, por 1.500€ poderá frequentar 200 horas de formação presencial e à distância que lhe conferirão a Certificação de Monitor de Neurofitness. Por apenas mais 500€ e 100 horas de formação poderá obter a Certificação de Especialização em Neurofitness e tornar-se num verdadeiro especialista nesta área tão recente que nem a Wikipédia faz ideia do que seja. E, se toda a actividade do Instituto da Inteligência lhe despertar verdadeiro entusiasmo ou insana inveja, saiba que a emulação está ao seu alcance. Por tarifas que oscilam entre 10 mil e 50 mil euros, poderá aceder a um contrato de franchising, receber alguma formação e abrir o seu próprio Instituto da Inteligência. E nem sequer é obrigatório ter formação em Psicologia para o efeito: “o contrato de franchising pode ser estabelecido com qualquer pessoa com talento para gestão e com espírito empreendedor (a avaliar durante o processo de candidatura), não sendo obrigatório ter formação na área da Psicologia. Todavia, neste como nos restantes casos, todos os centros devem ter um director técnico com licenciatura em Psicologia ou similar” (negrito nosso).
Se o Instituto da Inteligência não desilude, com todos os seus múltiplos departamentos e serviços à escolha, o mesmo se poderá dizer do seu prolífico fundador/coordenador/director, o homem que assina todos os blogues, todos os sítios web, todas as investigações e que é afinal o único investigador alguma vez citado do Instituto, o neuropsicólogo Nelson Lima. O Doutor Nelson Lima é diplomado em Hipnologia Médica e em Psicologia Humanista e Transpessoal (sem referência a universidade), possui Estudos Superiores de Neuropsicologia que, de acordo como o currículo presente no seu blogue sobre neuropsicologia, lhe foram conferidos pela IEBI, em Espanha (não consegui descobrir esta instituição), e é doutorado em Investigação Psicológica pela Bircham University, uma instituição de ensino à distância. Nelson Lima é o investigador que assina os estudos referidos pelo Público e que fundamentam as críticas descritas no respectivo artigo… No entanto, não se conhece uma única publicação daquele investigador, seja de estudo, investigação ou outra obra, em qualquer publicação científica ou, sequer, de autor; nem qualquer dos múltiplos sítios e blogues da instituição por ele dirigida faz qualquer menção à sua eventual existência, o que parece ser a melhor prova da sua real inexistência, pois, caso contrário, seria tão somente natural que as adicionasse aos restantes elementos propagandísticos e incríveis provas de sucesso que populam aquelas páginas. Nelson Lima não é também curto em filiações, anunciando ser membro de nada menos do que sete instituições de prestígio internacional, entre as quais a American Psychological Association e a International Neuro-Psychoanalysis Society. Da primeira recebi por email a confirmação de que Nelson Lima não é efectivamente membro mas apenas International Affiliate, estatuto à disposição de qualquer um de nós pela módica quantia de U.S. $27. A segunda, refere explicitamente no seu sítio que "the Society is not a credentialing nor qualifying organisation, and members are discouraged from using membership status for promotional purposes". E mais não me dei à maçada de averiguar porque não sou jornalista, apenas bloguista consciencioso.
Esta é a instituição e este é o investigador que a LUSA e o Público, sem qualquer hesitação ou interrogação, citam contra a qualidade do trabalho desenvolvido pelos professores portugueses, juntando-se assim de forma acrítica, irreflectida e irresponsável à campanha promovida pelo poder político! Esta é a qualidade do nosso jornalismo que não verifica as suas fontes nem a respectiva credibilidade!
Uma simples pesquisa ao arquivo da LUSA revela pelo menos quatro artigos que parecem (infelizmente não pude aceder ao conteúdo dos artigos, apenas aos seus títulos) referir-se directamente a estudos do Instituto da Inteligência, em vários momentos distintos. O Público já em 2004 havia publicado pelo menos um artigo sobre esses mesmos estudos (curiosamente noutro momento em que o ensino estava nas bocas do mundo, no rescaldo dos atribulados concursos de 2004) – nesse artigo, também curiosamente, não estando os professores na berlinda mas sim o Ministério, a responsabilidade era apontada ao “sistema escolar”, aos “programas extensos”, às “muitas aulas, muito extensas” e até à “falta de motivação dos alunos”. O Expresso, na sua edição de 28 de Julho, com o artigo da jornalista Paula Cosme Pinto, "A Culpa não é dos alunos", e também o jornal “A Página da Educação”, em artigo de Andreia Lobo, deram a sua quota parte de tempo de antena ao bom doutor e, de acordo com um dos blogues do Instituto, a lista está longe de se ficar por aqui:
“Têm sido numerosas as reportagens e entrevistas feitas por órgãos como a RTP, SIC, TVI, Rádio Renascença, TSF, RDP, jornal PÚBLICO, JORNAL DE NOTÍCIAS, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 24 HORAS, TAL & QUAL, EXPRESSO, CORREIO DA MANHÃ, revista SÁBADO, MULHER MODERNA, MARIA, ACTIVA, FITNESS, CRESCER, PAIS & FILHOS, HAPPY WOMAN, VISÃO, EXAME, SEMANÁRIO ECONÓMICO assim como rádios e jornais regionais e estrangeiros (revista AMANHÃ e jornal DIÁRIO DA MANHÃ, do Brasil, IL MESSAGERIO DI ROMA, Itália, etc).”
Fonte: Nelson Lima no blogue Projecto Alfa.
E a pergunta que se impõe é: como é possível que ao longo de anos uma instituição privada, sem provas científicas dadas, sem natureza jurídica evidente, e o seu respectivo dirigente, alguém cuja formação científica é, no mínimo, sui generis, que aparentemente nunca publicou um único trabalho sobre o objecto dos seus estudos, tenham merecido tal divulgação, tal suporte por parte da comunicação social, provavelmente em detrimento de iniciativas muito mais sérias e válidas e, sem dúvida, para prejuízo dos professores portugueses? Como é possível que a nenhum dos jornalistas tenha passado pela cabeça interrogar-se sobre a credibilidade da sua fonte? Como é possível tamanha falta de lucidez e de inteligência?
A seriedade da citação
Se as opiniões e métodos do Doutor Nelson Lima e do Instituto da Inteligência são, no mínimo, questionáveis, é preciso dizer-se, em abono da verdade, que, no que diz respeito aos problemas do ensino em Portugal, o seu posicionamento não polemiza apenas a competência profissional dos professores. Poderá ser, pois, que deva ser atribuída aos diferentes jornalistas que têm retratado as suas opiniões a responsabilidade pela sua selecção parcial e conducente à melhor optimização do consequente efeito sensacionalista, o que, a comprovar-se, demonstraria uma notável falta de ética e brio profissionais!
No seu próprio blogue, Nelson Lima apresenta o texto que parece ter servido de base ao artigo do Público, texto que terá sido publicado antes daquela notícia, a 26 de Julho e que integra todas as expressões citadas. Intitulado "Por que há tanto insucesso escolar?" e apresentado como uma “síntese dos vários estudos realizados entre 2004 e 2006 pelo Instituto da Inteligência”, nele Nelson Lima refere múltiplas causas para o aparentemente insolúvel insucesso escolar, nomeadamente, para além dos citados pelo Público: escolas sobrelotadas; falta de meios; falta de condições de trabalho; problemas de stress e de burn-out (forma grave de esgotamento) nos professores (atingindo, no total, mais de 30% dos professores no activo); problemas no que respeita aos modelos de avaliação; incapacidade política, por parte dos diferentes governos e outras instâncias superiores ao longo dos anos, para encetarem medidas inovadoras capazes de uma reforma educativa consistente… Nelson Lima também se refere ainda, por exemplo, ao facto de, "de 300 pais e 200 professores, 76% considera[rem] os programas “obsoletos” e desajustados da realidade do nosso tempo", o que foi escamoteado pelo Público.
Aquilo que Nelson Lima não refere na síntese do seu estudo, o que é verdadeiramente imperdoável do ponto de vista científico, é a caracterização do universo estudantil que lhe serviu de amostra. Os alunos a que N.L. terá tido acesso, como ele próprio o refere, terão, em princípio, sido aqueles cujos pais se mostraram suficientemente preocupados para procurarem soluções para os problemas escolares dos seus filhos e que o procuraram voluntariamente. Estes alunos beneficiam pois de uma atenção e acompanhamento parental à partida invulgares e os seus encarregados de educação possuem meios económicos que lhes permitem encarar os tarifários do Instituto como viáveis. Estes não são alunos que possam servir para tipificar os problemas do nosso sistema de ensino ou da maioria dos estudantes com real insucesso. Não admira pois que “postos perante provas de inteligência, 77% daqueles alunos apresentaram níveis normais de capacidade de aprendizagem”. É uma amostra atípica, que não traduz a realidade, e os estudos dela derivados poderão servir de suporte a um debate especulativo mas nunca a “conclusões” validadas.
Nota do autor: desde a data da publicação inicial deste texto no meu próprio blogue (08 de Agosto), o “Instituto da Inteligência” parece ter reduzido o número total dos seus blogues no “Blogger” dos treze referidos para os actuais quatro patentes no respectivo perfil (http://www.blogger.com/profile/1749115). Consequentemente, algumas das hiperligações deste artigo já não conduzirão aos textos citados.