EM CONSCIÊNCIA
“O tema que me leva a escrever-lhe por certo não lhe escapou nem a si nem a inúmeros leitores. Refiro-me à legenda da fotografia da página 16 da edição da passada segunda-feira (19 de Novembro de 2007) a ilustrar, com enorme destaque, o artigo sobre a manifestação de Bruxelas em favor da unidade da Bélgica.
O texto ‘1 wallon + 1 flamande = 2 belges’ foi traduzido como ‘Uma Flandres e uma Valónia igual a duas Bélgicas’...
Uma boa tradução seria ‘um valão mais uma flamenga igual a dois belgas’.
O sentido do texto do cartaz foi, portanto, completamente adulterado, sendo traduzido por uma expressão que acaba por referir precisamente o contrário, não só do texto original, como do sentido político da própria manifestação.
Há traduções infelizes ou displicentes. Neste caso trata-se de uma tradução incompetente (...). É uma falha grave. É exigível responsabilidade e rigor em todas as profissões. Também na de jornalista”, escreve Carlos Lopes Gonçalves, um leitor de Lisboa.
“O PÚBLICO incute nos leitores uma ideia contrária à expressa na fotografia: duas comunidades linguísticas = uma Bélgica”, acrescenta Emanuel Aniceto.
Os leitores têm razão. A Bélgica discute a divisão do país. O PÚBLICO “resolve” o problema com uma simples legenda...
NOTA FINAL
“O papel do 'ombudsman' não é o de ser popular ou amado. A função do 'ombudsman' é de recuperar ou de manter o respeito dos leitores pelo seu jornal. Não é um objectivo completamente desinteressado. A longo prazo, o respeito é o único sentimento que levará o público a ler, a acreditar, a apoiar – e a comprar um jornal”, disse Charles W. Bailey, director do ‘Minneapolis Tribune’, ao empossar o primeiro provedor do leitor do seu jornal. A frase foi reproduzida, aqui (23 de Fevereiro de 1997), por Jorge Wemans, o primeiro provedor do PÚBLICO. Nada mudou desde então. Foi esse também o meu propósito, na medida em que procurei suscitar uma linha de esclarecimento e de diálogo permanente entre leitores e jornalistas, fazer do jornal uma obra aberta e interactiva, entre quem o escreve e quem o lê. Debateram-se questões específicas da prática jornalística, em nome do mesmo acréscimo de transparência que pedimos aos outros e da promoção de uma cultura de cidadania. E nunca me esqueci de que, apesar da competição, da pressão económica e da fragmentação do mercado, a liberdade de imprensa é um insubstituível esteio da democracia.
É de justiça sublinhar que contei sempre com o apoio da direcção, do Conselho Consultivo e de muitos jornalistas do PÚBLICO. A contribuição de milhares de leitores foi, por outro lado, decisiva. Sem eles, o desafio teria sido uma missão impossível.
Parto como cheguei, com imensas dúvidas sobre a articulação dos princípios com a prática do jornalismo e as poucas e mesmas certezas de sempre. Questionei, por exemplo, o plágio, a promiscuidade entre informação e publicidade, a condenação das pessoas na praça pública. Também denunciei a proliferação dos erros de Português. Cheguei a ser acusado de ser o ‘provedor dos pormenores’ e admito que nalguns casos assim foi, mas, ao contrário dos leitores que os apontaram, tenho consciência de que o jornalismo não é uma ciência exacta e um jornal não é uma enciclopédia.
Também eu, muitas vezes, fui vítima da pressão do tempo, da compressão do espaço, do cansaço, do humano cansaço. São factores que não justificam as falhas, mas permitem explicá-las. E se assim era no meu tempo de jovem repórter, pior é ainda hoje, porque maiores são os constrangimentos e as ameaças: a competição desenfreada, o desemprego, a contenção de custos e o impacto das novas tecnologias. O sistema pressiona o jornalista, esmaga o jornalismo. A informação era um serviço. Passou a ser mais uma mercadoria, é promovida como tal. Os cidadãos ficaram reduzidos a meros consumidores. A opção lógica é, portanto, dar-lhes o que querem, já que o freguês tem sempre razão. O ‘infotainment’ alastrou, invadiu as páginas dos jornais. É provável que a confusão de géneros acabe por fomentar a apatia. É uma perspectiva preocupante porquanto a democracia não depende só da eficácia das instituições e do desenvolvimento tecnológico, mas também e sobretudo dos cidadãos. E a informação é vital. É por isso que os jornalistas não podem ser acríticos, inofensivos, irresponsáveis e objectivos.
“Deves explicar que a tua voz é uma voz independente, porque é a independência do jornalismo associada à preocupação de verificar a informação que fazem com que o jornalismo valha a pena — sem as duas coisas, não pode existir uma real pretensão de credibilidade”, disse-me Bill Kovach, ex-jornalista do New York Times e do Atlanta Journal-Constitution, antes de eu aceitar ser provedor.
A premissa e a constatação do meu mestre na universidade Harvard permanecem válidas. E decididamente actuais. Aprendi com Bill a questionar-me, enquanto jornalista. E a questionar a profissão. “É crucial que os jornalistas definam claramente os valores e as responsabilidades comuns do jornalismo, na perspectiva da promoção da cidadania”. É, portanto, urgente repensar as regras sob pena de o jornalismo se tornar dispensável.
PS – Desejo a Joaquim Vieira, aos leitores e ao PÚBLICO as maiores felicidades.
O texto ‘1 wallon + 1 flamande = 2 belges’ foi traduzido como ‘Uma Flandres e uma Valónia igual a duas Bélgicas’...
Uma boa tradução seria ‘um valão mais uma flamenga igual a dois belgas’.
O sentido do texto do cartaz foi, portanto, completamente adulterado, sendo traduzido por uma expressão que acaba por referir precisamente o contrário, não só do texto original, como do sentido político da própria manifestação.
Há traduções infelizes ou displicentes. Neste caso trata-se de uma tradução incompetente (...). É uma falha grave. É exigível responsabilidade e rigor em todas as profissões. Também na de jornalista”, escreve Carlos Lopes Gonçalves, um leitor de Lisboa.
“O PÚBLICO incute nos leitores uma ideia contrária à expressa na fotografia: duas comunidades linguísticas = uma Bélgica”, acrescenta Emanuel Aniceto.
Os leitores têm razão. A Bélgica discute a divisão do país. O PÚBLICO “resolve” o problema com uma simples legenda...
NOTA FINAL
“O papel do 'ombudsman' não é o de ser popular ou amado. A função do 'ombudsman' é de recuperar ou de manter o respeito dos leitores pelo seu jornal. Não é um objectivo completamente desinteressado. A longo prazo, o respeito é o único sentimento que levará o público a ler, a acreditar, a apoiar – e a comprar um jornal”, disse Charles W. Bailey, director do ‘Minneapolis Tribune’, ao empossar o primeiro provedor do leitor do seu jornal. A frase foi reproduzida, aqui (23 de Fevereiro de 1997), por Jorge Wemans, o primeiro provedor do PÚBLICO. Nada mudou desde então. Foi esse também o meu propósito, na medida em que procurei suscitar uma linha de esclarecimento e de diálogo permanente entre leitores e jornalistas, fazer do jornal uma obra aberta e interactiva, entre quem o escreve e quem o lê. Debateram-se questões específicas da prática jornalística, em nome do mesmo acréscimo de transparência que pedimos aos outros e da promoção de uma cultura de cidadania. E nunca me esqueci de que, apesar da competição, da pressão económica e da fragmentação do mercado, a liberdade de imprensa é um insubstituível esteio da democracia.
É de justiça sublinhar que contei sempre com o apoio da direcção, do Conselho Consultivo e de muitos jornalistas do PÚBLICO. A contribuição de milhares de leitores foi, por outro lado, decisiva. Sem eles, o desafio teria sido uma missão impossível.
Parto como cheguei, com imensas dúvidas sobre a articulação dos princípios com a prática do jornalismo e as poucas e mesmas certezas de sempre. Questionei, por exemplo, o plágio, a promiscuidade entre informação e publicidade, a condenação das pessoas na praça pública. Também denunciei a proliferação dos erros de Português. Cheguei a ser acusado de ser o ‘provedor dos pormenores’ e admito que nalguns casos assim foi, mas, ao contrário dos leitores que os apontaram, tenho consciência de que o jornalismo não é uma ciência exacta e um jornal não é uma enciclopédia.
Também eu, muitas vezes, fui vítima da pressão do tempo, da compressão do espaço, do cansaço, do humano cansaço. São factores que não justificam as falhas, mas permitem explicá-las. E se assim era no meu tempo de jovem repórter, pior é ainda hoje, porque maiores são os constrangimentos e as ameaças: a competição desenfreada, o desemprego, a contenção de custos e o impacto das novas tecnologias. O sistema pressiona o jornalista, esmaga o jornalismo. A informação era um serviço. Passou a ser mais uma mercadoria, é promovida como tal. Os cidadãos ficaram reduzidos a meros consumidores. A opção lógica é, portanto, dar-lhes o que querem, já que o freguês tem sempre razão. O ‘infotainment’ alastrou, invadiu as páginas dos jornais. É provável que a confusão de géneros acabe por fomentar a apatia. É uma perspectiva preocupante porquanto a democracia não depende só da eficácia das instituições e do desenvolvimento tecnológico, mas também e sobretudo dos cidadãos. E a informação é vital. É por isso que os jornalistas não podem ser acríticos, inofensivos, irresponsáveis e objectivos.
“Deves explicar que a tua voz é uma voz independente, porque é a independência do jornalismo associada à preocupação de verificar a informação que fazem com que o jornalismo valha a pena — sem as duas coisas, não pode existir uma real pretensão de credibilidade”, disse-me Bill Kovach, ex-jornalista do New York Times e do Atlanta Journal-Constitution, antes de eu aceitar ser provedor.
A premissa e a constatação do meu mestre na universidade Harvard permanecem válidas. E decididamente actuais. Aprendi com Bill a questionar-me, enquanto jornalista. E a questionar a profissão. “É crucial que os jornalistas definam claramente os valores e as responsabilidades comuns do jornalismo, na perspectiva da promoção da cidadania”. É, portanto, urgente repensar as regras sob pena de o jornalismo se tornar dispensável.
PS – Desejo a Joaquim Vieira, aos leitores e ao PÚBLICO as maiores felicidades.