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domingo, julho 16, 2006 

A COR DA JUSTIÇA

A mensagem enviada pela Presidência do Conselho de Ministros – Alto-Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas ao provedor é inédita, importante e decididamente actual: questiona práticas jornalísticas, por vezes, erradas, mas correntes. E propõe uma recomendação aos jornalistas do PÚBLICO: a indicação da raça, nacionalidade, ou da situação documental não deve ser sistematicamente publicitada.

Eis a missiva:

Assunto: Notícia do jornal Público de 04.05.2006, constante da página 52, sob o título ‘Dois romenos detidos por copiar cartões de Multibanco’

Exmo. Senhor,

Tendo presente o teor do título e da notícia acima referida cuja cópia se anexa, venho, na qualidade de Presidente da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), criada nos termos do Decreto-Lei N.º 134/99 de 28 de Agosto, cujo papel e missão como órgão fundamental na luta contra a xenofobia e a discriminação racial foi reforçado através da Lei n.º 18/2004 de 11 de Maio, enviar a V. Exa. o documento intitulado ‘Posição sobre referências a nacionalidade, etnia, religião ou situação documental em notícias a partir de fontes oficiais e em meios de comunicação social’, que colheu a unanimidade dos Conselheiros presentes na reunião do CICDR do passado dia 10.04.2006.
Pretende-se, com este documento, informar os media e as fontes oficiais de informação sobre o entendimento desta Comissão quanto aos deveres que decorrem do princípio legal da igualdade de tratamento de todos os cidadãos
através da ausência de discriminação, directa ou indirecta, que viole o princípio da igualdade conforme o disposto no art. 3.º da referida Lei n.º 18/2004 de 11 de Maio, bem como obter uma maior consciencialização dessas entidades para o cumprimento de algumas regras que julgamos ser relevantes na luta contra a xenofobia e o racismo, evitando, deste modo, injustas estigmatizações de cidadãos de nacionalidades estrangeiras junto da opinião pública.
Considerando o papel do provedor do Leitor do PÚBLICO como a instância crítica do trabalho dos jornalistas à luz das normas deontológicas que regem a profissão e de avaliação das sugestões apresentadas pelos leitores, designadamente, através de recomendações internas emitidas para esse efeito, venho, em nome da CICDR, colocar à consideração de V. Exa. a subscrição de uma recomendação
interna que reflicta os princípios ínsitos no mencionado comunicado.

O Presidente da CICDR
Rui Marques


Eis um excerto do comunicado em questão:

“1 – Considerando que a tolerância e o afecto pela diversidade são particularmente condicionados pela percepção que a opinião pública tem dos imigrantes e das minorias através dos media,

2 – Considerando que é recorrente a referência em meios de comunicação a elementos como a nacionalidade, etnia, religião ou situação documental, particularmente em situações de ilícitos cuja explicação objectiva nada têm a ver com aqueles caracterizadores,

3 – Considerando que muitas vezes as fontes oficiais publicitam, directa ou indirectamente, na sua actividade quotidiana esses caracterizadores, induzindo os meios de comunicação social a reproduzi-los,

4 – Considerando que estas referências – quer em fontes, quer em meios de comunicação – induzem potencialmente a uma cadeia de estigmatização e de reforço de preconceitos contra estrangeiros, minorias étnicas ou religiosas ou imigrantes em situação irregular,

5 – Considerando que a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial (CICDR), criada pela lei n.º 134/99 de 28 de Agosto, tem por objecto prevenir e proibir a discriminação racial sob todas as formas e sancionar a prática de actos que se traduzam na violação de quaisquer direitos fundamentais, ou na recusa ou condicionamento do exercício de quaisquer direitos económicos, sociais ou culturais, por quaisquer pessoas, em razão da sua pertença a determinada raça, cor, nacionalidade ou origem étnica.

Vem a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial,
(…)
2. Solicitar aos meios de comunicação social, sempre num quadro de respeito pela sua independência editorial, que evitem na construção das notícias a referência a nacionalidade, etnia, religião ou situação documental, sempre que esta não seja um eixo explicativo do essencial da notícia,

3 – Convidar os editores dos diferentes meios de comunicação social a ponderarem se o peso relativo que é atribuído no espaço mediático a acções de detenção de imigrantes em situação irregular em Portugal, bem como o tom das notícias sobre essas operações, corresponde a uma opção rigorosa, equilibrada, proporcional e com respeito pela dignidade humana. (…)”

Comentários do provedor do leitor do PÚBLICO:

1 – A iniciativa de Rui Marques é tanto mais louvável quanto não se trata de uma queixa, mas de uma pedagógica chamada de atenção.

2 – A notícia que está na origem da carta da CICDR baseou-se num comunicado de imprensa da Polícia Judiciária (PJ).

3 – A notícia não foi assinada – opção editorial pertinente.

4 – A fonte foi devidamente identificada – opção editorial pertinente.

5 – A PJ menciona muitas vezes a nacionalidade dos suspeitos nos comunicados, independentemente de serem estrangeiros ou portugueses.

Exemplos (www. policiajudiciaria.pt/htm/comunicados.htm):


13/7/2006 – “Foi detido um indivíduo do sexo masculino, de 32 anos, de nacionalidade espanhola e residência na zona de Cádiz.”

05/07/2006 – “A Polícia Judiciária, através da Directoria de Faro, procedeu, no dia de ontem, à detenção de dois indivíduos, de nacionalidade portuguesa, de 21 e 26 anos de idade, pela prática de um crime de roubo.”

Compete, em primeiro lugar, aos serviços do Estado respeitar as regras que esse mesmo Estado defende e recomenda a terceiros, incluindo a comunicação social.

Compete ao PÚBLICO decidir o que é notícia e respeitar as regras éticas e deontológicas que regem a profissão de jornalista.

Considero que a indicação da raça, nacionalidade, ou da situação documental só deve ser publicitada quando constitui um elemento essencial da notícia.

É o que estipula, aliás, o próprio Livro de Estilo do PÚBLICO: “A cor da pele ou a nacionalidade do suspeito de um crime nunca deve merecer relevância noticiosa, salvo quando existirem óbvias implicações com interesse público.”

A divulgação da nacionalidade dos detidos é, neste caso, irrelevante porquanto é só isso mesmo, um facto disperso, que sem contexto permite quando muito apenas uma conclusão primária e deveras simplista: “Não são cá dos nossos.” E, a partir daí, corremos o risco de generalizar, de estereotipar pejorativamente, meter a priori injustamente muitos ou todos os romenos no mesmo saco…
Por outro lado, continuamos a ignorar qual é a associação criminosa “que estende a sua actividade a toda a Europa” referida no comunicado e no artigo, a sua importância, localização, organização, cumplicidades, etc.

O provedor só pode, portanto, concordar com as solicitações formuladas pela Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial sobre, designadamente, a omissão da “referência a nacionalidade, etnia, religião ou situação documental, sempre que esta não seja um eixo explicativo do essencial da notícia”.
Podia acrescentar o sexo, a orientação sexual e as doenças e deficiências físicas ou mentais.
É apenas a afirmação de um princípio sagrado da profissão: a primeira obrigação de um jornalista é a procura da verdade, reportando-a rapidamente com factos, rigor, contexto e um tratamento equilibrado. É uma responsabilidade enorme, mas é o preço da nossa credibilidade, questionada inexoravelmente edição após edição.


PS- O documento oficial (referido nesta crónica) sobre referências a nacionalidade, etnia, religião ou situação documental em notícias a partir de fontes oficiais e em meios de comunicação social pode ser consultado no seguinte endereço electrónico: http://www.publico.clix.pt/docs/sociedade/Posicaocicdrsobrereferenciasnacionalidade.pdf

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